Marcado para segunda-feira, o julgamento de Eduardo Cunha marca um episódio que exige mais do que um minuto de reflexão.
Ninguém tem o direito de questionar a punição de Cunha, com base em provas indiscutíveis, sustentadas por várias testemunhas e documentos, inclusive internacionais.
A questão é outra. A contrapartida para a investigação de Cunha foi o golpe parlamentar que derrubou Dilma, um golpe à margem da lei – sem crime de responsabilidade – que serviu como tiro de misericórdia contra um governo acuado, sob ataque desde a posse, em minoria no Congresso, mas com a legitimidade dos 54,5 milhões de votos recebidos em outubro de 2016. Sem Cunha não haveria impeachment. Alguém vai negar?
Vamos olhar os fatos com a frieza necessária e avaliar a troca. Estamos falando de mudanças negativas que, mesmo que possam vir a ser revertidas mais tarde, por outro governo, terão um impacto profundo sobre várias gerações. O país perdeu uma presidente que, com todos os erros que podem ser apontados – e não são poucos – não pretendia entregar o pré Sal, nem enfraquecer o Minha Casa Minha Vida, nem quebrar os programas sociais para abrir espaço ao setor privado. Tampouco cogitava aprovar uma lei de teto de gastos que cria uma ditadura do capital financeiro sobre a economia até 2037 – quando a maioria dos personagens centrais da nossa vida pública de hoje já terá deixado o mundo dos vivos. Manteve uma política externa que buscava a soberania, o fortalecimento dos BRICS e do Mercosul, em vez de abaixar a cabeça para o grande irmão do Norte.
Dilma chegou a cogitar uma reforma da Previdência, proposta errada, que escrevi neste espaço que era comparável a um suicídio político. Mas suspendeu o processo quando ficou claro que não teria apoio dos sindicatos. Também abandonou o debate sobre leis trabalhistas pela mesma razão.
A conexão entre o golpe contra Dilma e a investigação sobre Cunha é um desses flagrantes que lembram os circuitos internos de TV que mostram o assalto a um estabelecimento comercial, em todas as etapas, desde a chegada dos criminosos para arrombar a porta até o momento de embarque da mercadoria roubada. É sintomático que, apesar de tantas evidências, se faça o possível para esconder a ligação entre as coisas. O que se pretende é apagar responsabilidades solidárias na articulação que trabalhou para derrubar a presidente de qualquer maneira.
Fica difícil dizer que uma articulação produzida em nome da moralidade foi fruto da iniciativa de um político que tantos colegas definem como gangster – e nenhum se atreve a corrigir essa definição. Embora já não houvesse a menor dúvida sobre as provas existentes contra ele na Lava Jato, Cunha foi mantido em seu posto enquanto podia providenciar os serviços necessitários para afastar Dilma. Depois que entregou mercadoria exigida pelos adversários que articulavam o golpe o STF autorizou que fosse aberto um processo contra ele.
Em maio, quando era Advogado Geral da União, José Eduardo Cardozo entrou com um mandato de segurança por “desvio de poder” contra Cunha. A tese, difícil de negar, é que usou de suas atribuições para atender a um interesse particular, sem ligação com interesse público. Você pode apontar um elemento subjetivo nessa avaliação.
O problema é que a cronologia dos fatos trabalha a favor do mandato e não contra. Todas as denúncias contra haviam sido rejeitadas até o momento em que o PT anunciou que iria votar contra ele no Conselho de Ética, formando uma maioria contra o presidente da Câmara.
Teori Zavaski rejeitou o pedido em 24 horas, mas colocou o tema para debate em plenário. Na segunda-feira passada, o PGR Rodrigo Janot recusou as alegações de Cardozo.
Pelo momento da decisão – três meses depois da chegada do mandato ao STF, cinco dias depois que a própria Dilma foi afastada e Temer tomou posse – era difícil imaginar que se tomasse outra medida, que seria equivalente a fazer a roda de acontecimentos tão graves mudar de direção, mesmo que fosse a opção correta. Na segunda feira, três dias atrás, teria sido necessário confrontar – fora de hora -- tudo e todos na articulação que derrubou Dilma, alegando que o processo deveria ter sido interrompido no nascedouro. Lembrar que o criminoso era Cunha, não Dilma. Mas não deixa de ser curioso registrar os argumentos de Janot.
Escrevendo sobre um pedido que envolvia a fase inicial do impeachment, ele usa argumentos próprios da fase final, após o voto de 61 a 20. Diz que é “improvável falar em direito líquido e certo à nulificação de atos que [...] sucederam-se dentro dos parâmetros da legalidade, com a participação colegiada de diversos outros agentes, até atingimento do quorum plenário qualificado que endossou o julgamento da denúncia pelo Senado Federal". Janot também desqualifica as acusações contra Cunha alegando que “são basicamente reportagens jornalísticas correntes, incapazes de demonstrar como o antagonismo político e o interesse da autoridade coatora[...] foram determinantes para a obtenção do sim da Câmara como requisito para o prosseguimento do processo”.
Embora um mandato de segurança seja um instrumento que deve falar por si, não deixa de ser curioso registrar que o PGR descarta uma denúncia com a alegação de que suas acusações “são basicamente reportagens jornalísticas correntes”. Se havia indício de crime, como se verificou até nos depoimentos ao Senado onde o mesmo Cardozo denunciou uma conspiração para prejudicar Dilma no Tribunal de Contas da União, o mais razoável era mandar que os fatos fossem investigados – no tempo devido, de preferência -- para impedir que o fato fosse consumado.
O debate sobre o impeachment irá prosseguir no STF e outros tribunais, a partir de recursos novos preparados pela defesa de Dilma.
Os jornais anunciam que em seu julgamento, nesta segunda-feira, Cunha deve ser condenado. A verdade é que ele tem muito favores a cobrar, ainda. Mesmo porque “Temer é Cunha”, como disse Romero Jucá, revelando a conexão entre o suiço e o impeachment.
Apesar disso, tenho certeza de que muitas pessoas irão festejar a provável condenação de Cunha. Serão estimuladas a isso pela TV Globo e quem mais tiver interesse em usar a punição de um condenado por provas infinitas para justificar o golpe contra uma presidente sem prova alguma, apenas circo.
Ainda que seja necessário festejar uma condenação por corrupção a partir de provas que ninguém foi capaz de desmentir, o retrospecto é alto demais. Mostra que Dilma foi derrubada por um mecanismo corrupto – num espetáculo de roteiro definido e pretextos risíveis. Demonstra que a luta contra a corrupção atacou, como prioridade, a democracia.
De minha parte, recomendo um sucesso da juventude que lutava contra a ditadura e ouvir Raul Seixas em Ouro de Tolo. Naquele país de 1973, tortura e execuções no auge, a alta classe média sentia-se feliz com carro do ano e apartamento novo. Olhando-se no espelho o poeta – a letra é de Paulo Coelho -- diz que deveria sentir-se “alegre e feliz por morar em Ipanema depois de passar fome por dois anos”. Revela que se sente um “grandessíssimo idiota” e diz que é preciso duvidar daquela felicidade ilusória, produto de um pensamento único:
“Eu é que não me sento no trono de um apartamento
A boca escancara cheia de dentes, esperando a morte chegar”.