As primeiras cidades, as vilas neolíticas, nasceram há doze mil anos, com o objetivo de proteger seus cidadãos dos ataques das guerras e favorecer os primeiros serviços coletivos, mais tarde, públicos e sociais.
Mas, com o passar dos milênios, as cidades organizaram as suas próprias guerras. Não entre cidades, tribos ou nações, mas, entre os seus próprios cidadãos, entre os mais ricos e os mais pobres, entre o centro e as periferias.
Travou-se uma guerra aberta, que extermina através da violência, do tráfico de drogas e, no trânsito, carros possantes matando pedestres. A tristeza está em ver aonde os governantes botaram os mais pobres pra morar.
A história da construção de moradias populares, no Brasil, daria para fazer alguns filmes de terror, tamanha a insensatez dos governantes em enganar o povo e ainda receber dividendos políticos e aplausos sinceros nas inaugurações.
Durante décadas, governantes de direita, e também de esquerda, ergueram moradias, financiadas pelo dinheiro suado dos trabalhadores e do esforço do empresariado (FGTS) em lugares insalubres e distantes dos centros das cidades.
Nesses lugares, o povo não tinha acesso à segurança nas ruas, porque a polícia não conseguia chegar com as suas viaturas e um pai de família tinha que andar meio dia para encontrar uma delegacia.
As escolas eram sempre menores e menos equipadas, para atender os filhos do povo, que ‘ganhava’ casas nesses residenciais mal feitos e esquecidos pelo poder público.
Pegar um ônibus nesses lugares era quase uma missão impossível, devido às longas esperas e veículos lotados, desrespeitosos com a legislação e, principalmente, com as mulheres, em pé, espremidas entre homens.
O centro comercial ficava longe e as upas, novidade da saúde no Brasil, não eram endereço curativo dos pobres. Nem dava para imaginar praças de esporte, ginásios cobertos ou centros de leitura. Isso era coisa para os filhos da elite e da classe média.
No inverno eram os sacos de plástico nos pés de adultos e crianças e, no verão, poeira entrando pelas janelas, como se o povo mais pobre tivesse sido atingido por uma maldição.
E, pra se livrar dessa imprecação, os únicos equipamentos sociais perto do povo, nesses residenciais esquecidos, eram os templos das igrejas e o trabalho social de seus religiosos e pastores.
Eram assim os conjuntos habitacionais construídos para os mais pobres, longe de todos os equipamentos sociais e maltratados pelo abandono público. E isso não era exclusividade da direita. A esquerda também construiu os seus residenciais aonde nem mapinguari queria morar.
Por isso, merece reflexão esse modelo novo que está se implantando no Acre: a Cidade do Povo. Tudo lá é diferente. Tudo que é equipamento social e serviço público estão perto do povo.
Dá pra ir a pé na upa, ir às escolas, na delegacia, nos centros esportivos e de leitura. Só precisa pegar ônibus para ir ao centro comercial, se não quiser usar o mercado público local, ou visitar, em outro bairro, um amigo.
Um centro de ensino profissionalizante e outro de nível superior estão sendo erguidos e os banheiros são aquecidos com energia solar. Pois é, os pobres também têm o direito de usar água quente, quando quiserem. Ou não têm?
A Cidade do Povo é como um coração, porque abriga os mais pobres em condições que só a classe média tinha e, acima de tudo, quebra mitos sobre o comportamento da parte mais humilde da nossa população.
Os índices de violência e de criminalidade na Cidade do Povo são mais baixos do que nas regiões pobres e periféricas de Rio Branco, mesmo abrigando a parcela mais excluída que saiu desses bairros.
Na Cidade do Povo estão se juntando os mais pobres dos mais pobres, de todas essas regiões. Era para concentrar índices altos de violência e de todos os males que cercam a base subterrânea da pirâmide, porque trouxe a exclusão social para um lugar só.
Mas, o que se vê é um povo humilde, esquecido há décadas, mostrando sua nobreza e sua alegria em morar no asfalto, perto de escolas, delegacias, centros de leitura, ginásios cobertos e upas.
Desmascarando teses envelhecidas, inclusive de intelectuais de esquerda, sobre o papel dos pobres nos índices de violência no Brasil. Os mais pobres têm um coração bom, só precisam de portas abertas e de mãos estendidas, de demonstração de que eles são importantes, que têm o direito de viver com dignidade.
O resto, eles fazem!
Moisés Diniz é membro da Academia Acreana de Letras e autor do livro O Santo de Deus.